Intensamente indagado na atualidade, o destino da indústria cinematográfica em função dos impactos da pandemia da Covid-19 é o tema desta sequência da série Audiovisualidades na Pandemia. Embora a consolidação do cinema dentro do âmbito comunicacional, artístico e cultural nos últimos 126 anos tenha se tornado um fato esclarecido, a existência do audiovisual nunca esteve isenta de questionamentos e incertezas no decorrer de sua trajetória.
Sendo fruto de um dos momentos cruciais de dúvidas sobre o porvir do cinema, em Quarto 666 (1982) o diretor de cinema Wim Wenders convidou um grupo de diretores durante o Festival de Cannes daquele ano a responder, diante de sua câmera, o questionamento de qual seria o futuro do cinema. Tendo a participação de entidades da indústria como Steven Spielberg, Michelangelo Antonioni, Michael Fassbinder e Jean-Luc Godard, Antonioni na ocasião foi o realizador que veio a ser o mais profético acerca dos rumos que a indústria viria a tomar: confrontando a realidade do crescimento das fitas VHS, o diretor falava sobre a necessidade de se adaptar à nova realidade do cinema em casa, a qual viria a se tornar cada vez mais rotineira.
Ainda que as colocações de Antonioni estivessem no caminho certo, elas não poderiam antecipar o surgimento e o crescimento exponencial da indústria de serviços de streaming na realidade atual. Impulsionada pelo isolamento social por conta da pandemia do novo coronavírus, a ascensão das plataformas de streaming ocorreu de maneira acelerada, onde conforme a pesquisa realizada pela MPA (Motion Pictures Association) recentemente, houve um aumento em mais de 26% de assinaturas deste tipo de serviço no mundo até março deste ano. Tendo destaque nesse crescimento plataformas como Netflix, Amazon Prime Video e Disney+, junto do fechamento dos cinemas por conta do lockdown, o antigo questionamento referente ao futuro ou possível fim do cinema se tornou novamente pertinente.
Dentre os imprevistos ocorridos por conta da pandemia, o atraso no calendário de lançamentos de longas como Tenet (Christopher Nolan, 2020), 007 – Sem Tempo Para Morrer (Cary Fukunaga, 2021) e Duna (Denis Villeneuve, 2021) trouxe consigo a necessidade de um acionamento de estratégias alternativas dos grandes estúdios para preservar a distribuição de seus filmes, bem como fomentar o movimento na indústria cinematográfica, apesar dos contratempos. Dentre as opções adotadas pelas companhias de distribuição, a que se demonstrou mais comum foi a realização de lançamentos simultâneos dos longas nas salas de cinema junto às plataformas de streaming, tendo como exemplo filmes como Viúva Negra (Cate Shortland, 2021), Cruella (Craig Gillespie, 2021) e Mulher-Maravilha 1984 (Patty Jenkins, 2020). Apesar de eficaz, a escolha não se demonstrou isenta de complicações e embates: além do posicionamento contrário de realizadores à escolha feita por estúdios como a Warner, a situação atípica apresentou complicações em outras instâncias.
Mas ainda que essas estratégias estejam alicerçadas ao retorno gradativo do funcionamento das salas de cinema, principalmente no decorrer de 2021, o desafio em atrair o grande público de volta para as salas e se manter relevante em relação ao consumo do grande público permanece. Buscando proporcionar uma experiência completa a seus espectadores, recentemente, a rede de salas Cinemark promoveu o evento Sessão Spoiler Night. Realizado junto ao lançamento do filme Venom – Tempo de Carnificina (Andy Serkis, 2021), a sessão especial promoveu salas tematizadas com o filme, junto de produtos de bomboniere personalizados e brindes do longa (credencial, ingresso colecionável, adesivo, mini poster, copo, sacobag e afins).
Ao construir um espaço que se prolonga além do filme projetado em tela, a iniciativa adotada promove “[…] uma espécie de experiência que não é adquirida por meio do conhecimento intelectual e racional, mas pela sensibilidade.” (ARANTES, 2005, p.155), acionando de forma mais palpável a relação dos espectadores com os personagens e universo cinematográfico da história. Desse modo, em conjunto com os lançamentos simultâneos, tais estratégias se revelaram alternativas pertinentes para a adaptação ao período pandêmico e preservação do meio. Seguindo as concepções do filósofo francês Henri Bergson (2006) e adaptando-as à questão do cinema na atualidade, é possível considerar que o audiovisual segue persistente, uma vez que se atualiza em busca de sua duração por meio destas transformações implementadas.
Além disso, a reinvenção dos dispositivos e das relações estabelecidas entre o público com o audiovisual permitem refletir a respeito da própria noção de cinema, que vai além de uma clássica representação instaurada, conforme salienta André Parente (2007). Para o autor, há um modelo hegemônico dominante denominado por ele como “forma cinemaâ€, que, apesar de determinado como convencional, na verdade se trata de apenas uma das possibilidades de se efetivar o cinema:
[…] não devemos permitir que a “Forma Cinema” se imponha como um dado natural, uma realidade incontornável. Aliás, a “Forma Cinema” é uma idealização. É preciso dizer que nem sempre há sala, que a sala nem sempre é escura, que o projetor nem sempre está escondido, que o filme nem sempre é projetado (muitas vezes e cada vez mais, ele é transmitido por meio de imagens eletrônicas, seja na sala, seja em espaços outros), nem sempre o filme conta uma história (muitos filmes são atracionais, abstratos, experimentais, etc). Entretanto, as histórias do cinema recalcam os pequenos e grandes desvios produzidos neste modelo, como se ela se constituísse apenas do que quer que tenha contribuído para o seu desenvolvimento e aperfeiçoamento. […] Na verdade, o cinema sempre foi múltiplo, mas esta multiplicidade foi, por assim dizer, encoberta e/ou recalcada por sua forma dominante. (PARENTE, 2007, p. 5-6)
A partir destas movimentações, pode-se perceber uma retomada lenta e gradual da indústria frente a um momento inédito e conturbado, ainda que a estimativa de um retorno à estabilidade seja apenas em 2025. Tendo uma boa resposta em sua semana de estreia, o longa Venom: Tempo de Carnificina quebrou recordes de bilheteria na era de estreias na pandemia, superando expectativas diante das incertezas enfrentadas. Concomitante a isso, há também uma ânsia por parte da população em retornar às salas de cinema: segundo o levantamento feito pela Hábitos Culturais em julho deste ano, 67% das pessoas entrevistadas disseram sentir saudades de ir ao cinema.
Logo, ainda que os próximos passos do cinema em uma realidade pós-pandêmica sejam incertos, sabemos, em função da trajetória, sua capacidade de adaptação e reinvenção das linguagens e suportes para a preservação de sua sobrevivência. Em 2008, quando Wim Wenders foi questionado sobre a pergunta que propôs a seus colegas 26 anos antes, o realizador respondeu: “o cinema saiu sozinho do buraco em que se encontrava, e está mais vivo que nunca.â€. Embora os tempos sejam outros, o sentimento otimista permanece: o cinema segue mais vivo que nunca, seja na sala de cinema, ou em nossas salas de estar.
Texto: Amerian Aurich e Julia Souza
REFERÊNCIAS:
ARANTES, Priscila. @rte e mídia: perspectivas da estética digital. São Paulo: Senac, 2005.
BERGSON, Henri. Memória e Vida. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
PARENTE, André. Cinema em trânsito: do dispositivo do cinema ao cinema do dispositivo. In: PENAFRIA, Manuela; MARTINS, Índia Mara. Estéticas do digital. Cinema e tecnologia. Covilhã: LABCOM, 2007.
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