Mídias digitais e teorias do presente

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Coordenador de grupo de Estudos do Software fala da importância da técnica nos estudos da comunicação e a cultura

Entrevista com Cícero Silva

Entre arte digital, comunicação, academia, cultura e software há relações que instigam alguns pesquisadores contemporâneos: é o caso de Cícero Inácio da Silva. Cícero é pesquisador e professor na área de arte e comunicação digital na Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e coordenador do Grupo de Estudos do Software no Brasil. É também diretor do Laboratório de Mídias Locativas (LaLoca), uma parceria entre a Universidade da Califórnia, San Diego (UCSD) e a UFJF.

Em estreito vínculo com Lev Manovich, diretor do grupo de Estudos do Software e um dos principais teóricos sobre as novas mídias, Cícero Silva conta que sua integração ao grupo de Estudos do Software foi acontecendo quase que por acaso. Tudo começou quando esteve na Brown University, no Estado de Rhode Island, nos Estados Unidos, realizando parte de sua pesquisa de doutorado e conheceu Noah Wardrip-Fruin, que também estava estudando lá. Noah estava realizando a construção da primeira CAVE (ambientes de realidade virtual) para fins artísticos e culturais. As parcerias entre ambos iniciaram nesses projetos e se estenderiam muito além deles. Após defender sua tese na PUCSP, com o título “O nome na hipermídia: reconstruindo o autor na cultura digital”, Cícero recebeu um convite de Noah para realizar uma pesquisa de pós-doutorado na Universidade de San Diego, onde aquele tinha assumido um cargo no departamento de Comunicação. O convite apontava, sobretudo, para a fundação de um novo grupo e um novo campo de pesquisa chamado “Software Studies”. “Assim que recebi aprovação da minha bolsa pela Capes, segui para a UCSD e lá iniciamos vários debates com Ted Nelson, Lev Manovich, Noah, Brett Stalbaum, Jeremy Douglass, entre outros, para a elaboração conceitual do que seria esse novo campo. Depois de formalizado o grupo, fizemos uma abertura oficial, com um workshop que reuniu mais de 40 pesquisadores da área de novas mídias e cultura digital durante 4 dias na UCSD”, explica o pesquisador.

A partir de então vários projetos do grupo de Estudos do Software foram aprovados pela National Science Foundation (NSF), pela Fundação MacArthur e outras instituições. Destaca-se o projeto de visualização de alta escala, com paredes de visualização de imagens de ultra definição para fins culturais. “Desde então, temos desenvolvido uma ‘metodologia’ relacionada ao nosso enfoque, que basicamente é ‘produzir criticando’ novas formas de compreensão da cultura do software contemporânea, seja através de visualizações científicas ou comunicacionais”, afirma o professor.

A entrevista a seguir, foi concedida por e-mail. Trata-se de uma conversa informal sobre questões relacionadas ao campo da comunicação, às mídias digitais, seus métodos de estudo, autores e suas diversas abordagens.

O ano de 2011 traz, entre tantas outras questões, os cem anos de Marshall McLhuan. Qual seria a principal contribuição desse autor para o estudo das mídias digitais?

Cícero Silva: McLuhan talvez tenha sido um dos primeiros teóricos da comunicação a entender que a máquina altera processos em vários níveis representacionais. Sua famosa frase diz isso rapidamente. Isso tem a ver com a ideia de que uma tecnologia funda mundos. Nossa incapacidade de ver isso nos cega, e muitas vezes tememos a monstruosidade das máquinas que nós mesmos inventamos. Gosto muito de um autor que trata da modificação da nossa visão ao longo do surgimento dos aparelhos ópticos, Jonathan Crary, no Techniques of the Observer, que conseguiu de certa maneira formalizar uma “estratégia” das modificações ocorridas do século XIX até o XX no campo das imagens. McLuhan, portanto, é hoje um autor que merece ser revisitado. Recentemente li uma entrevista com ele, bárbara, e parecia que eu estava lendo algo publicado nos dias de hoje. Até vou citar, pois vale a pena: “Tendo em conta que por mídia não entendo unicamente os mass media….e considerando que as sociedades sempre estiveram mais condicionadas pela natureza de seus mass media que pela mensagem que estes lhes transmitem, temos então de concluir que quando uma nova tecnologia penetra numa sociedade, satura todas as instituições” (McLuhan, publicado no livro O Universo das Imagens, Rio de Janeiro, Salvat, 1979).

Que outros autores caminham, de alguma forma, na direção de McLuhan e conseguem, na sua visão, dar conta dos desafios das mídias digitais?

Cícero Silva: Atualmente, penso que para se analisar as novas mídias e o seu impacto em um campo mais amplo da sociedade, alguns autores como Friedrich Kittler, principalmente em seu livro Gramophone, Film, Typewriter; Matthew Fuller, com o seu Software Studies; o próprio Lev Manovich; Noah Wardrip-Fruin com o seu Expressive Processing; Matthew Kirschenbaum, com Mechanisms; Bolter com os seminais Writing Spaces e posteriormente com o seu livro crítico sobre a remediação (Remediation); Pau Alsina, um ótimo crítico do papel das novas mídias na arte e na comunicação; Geert Lovink, com seus livros sobre questões fundamentais ligadas à Internet; e Alex Galloway, com sua crítica à sociedade de controle na era das conexões, podem nos fornecer algumas boas indicações. No Brasil gosto muito da Giselle Beiguelman, professora da Universidade de São Paulo, com sua crítica acurada e em “cima” dos fenômenos comunicacionais e informacionais contemporâneos.

Na introdução do livro? The Language of New Media, Lev Manovich afirma querer teorizar sobre o presente e não especular sobre o futuro. De que formas você acha que ele está conseguindo atingir esse objetivo?

Cícero Silva: Lev Manovich é um sujeito do contemporâneo, que se interessa pelo que está em curso agora, que viaja e que presta muita atenção ao que se passa no mundo. Tanto faz se está em um evento na China, na Malásia, na Coréia ou mesmo no Brasil, nada escapa de sua lupa “teórico-conceitual”. Sempre faz referência a uma avaliação do presente com metodologias mixadas entre análises formais (já que a forma é para ele importante, e isso talvez venha de uma formação mais ligada ? sua experiência de ter vivido a decadência da União Soviética) e questões de cunho conceitual (como quando utiliza o “informacionalismo” de Castells para falar do período em que estamos). Nesse sentido, entendo que o que ele descreve como “o presente” tem a ver com a postura que ele adotou para ver o mundo.

O que interessa nessa análise é você poder olhar para esse cenário “enorme” e quase incalculável da representação “cultural” humana e poder observar de que forma alguns algoritmos de captação de cor, de geração de vídeo e de distribuição de imagens podem nos levar a compreender um pouco da nossa condição atual. E Lev tem apostado em gerar imagens para ver essa imensidão de dados, e daí gerar possibilidades de compreensão cultural, são caminhos para entender o que agora vivemos.

O contemporâneo

Ser um homem contemporâneo não é fácil, pois exige se livrar de várias amarras que, em vários momentos, nos levam a afundar e a perder a vontade de aprender e a reconhecer que algo pode vir a ser diferente; de que existe algo onde a maioria dos intelectuais só vê repetição e utilização infantilizada. Por exemplo, quando vamos falar de livros digitais, das novas formas de distribuição jornalística (e hoje o Huffington Post [8 de fevereiro de 2011] foi comprado pela AOL por mais de 300 milhões de dólares: um blog fundado por uma pessoa, veja como as coisas mudam rapidamente…) sempre encontramos resistências das mais variadas. Além disso, há uma desconfiança geral por uma grande parte de pesquisadores que preferem se defender dessas questões dizendo que não se prendem ? s técnicas – uma desculpa, no fundo, barata. Como se uma técnica não fundasse novas instituições! Ou vamos negar que a Universidade foi fundada a partir do tipo e da prensa móvel, fato descrito por Chartier em seu livro A Aventura do Livro? Bem, se o livro foi um dos “fundadores” dessa maravilha do milênio que passou, o que fundará a democratização absoluta do conhecimento – digo, de todos os livros, de forma irrestrita e ilimitada?

Compartilhar o conhecimento

No ano passado, o fundador do Instituto para o Futuro do Livro, Bob Stein, citou, em várias palestras realizadas no Brasil, um fenômeno interessante que provavelmente vai começar a existir na academia. Em algumas universidades americanas e coreanas, dado o “compartilhamento do conhecimento”, já é possível pleitear uma tese de doutorado escrita em “grupo”, por três ou quatro pesquisadores. Isso é o resultado de um processo novo, desconhecido, mas que deve ser enfrentado sem medo, com muita reflexão. E de certa maneira, entendo que Manovich tenta pensar dessa forma, enfrentando as resistências e tentando compreender o nosso momento, sem futurologia.

Produzir tecnicamente

Penso que a contribuição que Lev vem oferecendo no sentido de pensar o contemporâneo é – e isso pode soar um pouco anti-acadêmico ou mesmo muito “norte-americano” – produzir tecnicamente o que ele tem dito conceitualmente. Ou seja, o grupo de Software Studies fundado por ele, e do qual faço parte desde o começo, utiliza sistemas computacionais de alta performance e complexidade, geralmente utilizados para calcular questões do mercado financeiro, analisar modificações climáticas ou mesmo simular explosões de bombas nucleares, para analisar conteúdos culturais. Em sua pesquisa denominada Analítica Cultural, Lev demonstra que em uma análise de “todos os filmes do youtube” é possível observar que existem determinadas “formas” e “cores” padrão, além de determinados gêneros que aparecem com mais frequência em determinados vídeos, e que há também um tempo médio dos vídeos postados, entre outras coisas.

Gerar imagens para compreender a cultura

O que interessa nessa análise é você poder olhar para esse cenário “enorme” e quase incalculável da representação “cultural” humana e poder observar de que forma alguns algoritmos de captação de cor, de geração de vídeo e de distribuição de imagens podem nos levar a compreender um pouco da nossa condição atual. E Lev tem apostado que gerar imagens para ver essa imensidão de dados, e daí gerar possibilidades de compreensão cultural, são caminhos para entender o que agora vivemos.

Como estão sendo vistos os estudos do software no meio acadêmico?

Cícero Silva: A receptividade tem sido muito interessante e temos tido a oportunidade de apresentar o campo de pesquisa em vários lugares, para pessoas e instituições que se mostraram interessadas. É claro que muitas vezes somos chamados para falar em eventos só de “tecnologia”, dada a utilização da palavra “software”, e alguns críticos não compreendem muito bem o que estamos querendo dizer quando dizemos que o “software é a mensagem”. Isso tanto na área de exatas quanto na área de comunicação. Aliás, na área de comunicação, às vezes é mais difícil apresentar o campo, o que deveria ser fácil, dada a proximidade com McLuhan, entre outros; mas não, a comunicação, infelizmente, ainda não consegue compreender muito bem o impacto de uma das mais famosas frases de McLuhan. Além disso, o campo da computação também questiona alguns dos preceitos do nosso grupo, principalmente no que diz respeito ao uso que fazemos dos recursos computacionais, que não são, digamos assim, com fins, para eles, ditos “científicos” – como mensurar o número de vezes que um corte em um plano sequência foi realizado em um filme russo, por exemplo. No Brasil ainda estamos iniciando projetos de pesquisa que tentam estabelecer o campo por aqui. Já temos projetos em andamento no PACC da UFRJ, sob a coordenação de Heloisa Buarque de Holanda, além de projetos de visualização de determinados acontecimentos culturais e processos comunicacionais na UFJF.

Que perspectiva o grupo adota na abordagem do audiovisual nessa metodologia de visualização de dados?

Cícero Silva: Nossos estudos de visualização levam em conta o surgimento de uma nova estética, de outra possibilidade formal para compreensão da informação. Nesse sentido, não mais tratamos de buscar só elementos narrativos para descrever um processo ou um fato, mas sim de constituir outra possibilidade de compreensão, seja através da construção de imagens que capturam uma vasta quantidade de variáveis, seja através da ação dos usuários sobre essas imagens que acabam gerando novas perspectivas de compreensão sobre o que se está vendo. Quando você pode ter noção de quantas vezes um determinado artista apareceu em “todos” os filmes de Hollywood e, além disso, quantas vezes ele apareceu em um determinado papel, esse fato corriqueiro, que muitas vezes tomaria a vida de um pesquisador de cinema, pode nos dar indicações sobre porque determinado filme pôde ser bem sucedido ou não, de que forma uma determinada técnica foi utilizada e transformou a estrutura narrativa a partir de sua utilização; enfim, várias perspectivas se abrem quando o computador deixa de ser apenas uma máquina de contar e passa também a definir um aparato estético.

Games: a nova literatura

Volto a citar o Bob Stein quando disse no ano passado que um jogo como World of Warcraft é a nova literatura contemporânea, na qual a história já foi escrita (pelos autores do jogo), mas da qual você participa comungando de um espaço comum entre vários leitores que querem montar suas próprias escolhas e seus próprios objetivos. Ou seja, se Umberto Eco um dia pensou em uma Obra Aberta, certamente World of Warcraft é a melhor descrição desse fenômeno antes só existente no plano teórico. Também existe um trabalho que gosto bastante de um artista-tecnólogo chamado Golan Levin, que criou uma obra on-line denominada The Dumpster.

Estética de banco de dados

The Dumpster foi seminal na discussão de uma estética do banco de dados, pois traz uma visualização de “todos” os rompimentos amorosos via “blogs” em determinado período coletado pelo artista. O interessante no projeto é a forma como ele apresenta os dados. São pequenas bolinhas que vão caindo infinitamente e que, se clicadas, abrem o trecho textual no qual os dois amantes rompem sua relação. Após certo tempo lendo aquelas confissões e vendo as bolinhas caírem sem parar, começamos a ter uma sensação estranha de que, apesar da obra coletar só “posts” de blogs em língua inglesa, temos uma percepção estranha de que o mundo todo “rompe” namoros da mesma forma tola, kitsch e sem graça. Ou seja, somos todos planificados, mediados por sistemas eletrônicos e digitais, mas no fundo nossas relações, nossas percepções de mundo e a forma como as projetamos continuam exatamente as mesmas – sem falar nos filmes de ficção científica ultra super avançados que têm como base de suas narrativas temas que não conseguem ultrapassar a idade média, guerreiros estelares com espadas, mouros intergalácticos, enfim, uma infinidade de emoções basicamente simples e pouco sofisticadas. É nesse sentido que pretendemos avançar, criando outras formas de pensar no que representa quando falamos do próprio de uma imagem.

2 Responses

  1. Gustavo Fischer

    Sonia, excelente matéria e contribuições muito legais de referências pelo Cícero.