Audiovisualidades na Pandemia: relicários

A Série TCAv: Audiovisualidades na Pandemia tem trazido discussões interessantes: um conjunto de textos que passou pelo cinema de terror; a presença das vídeo chamadas em nosso dia a dia; curtas produzidos a distância com recursos digitais; o flâneur do isolamento; festivais de cinema a distância; o uso (ou abuso) de nossos dados; eventos acadêmicos;  reflexões acerca da intimidade doméstica e a pandemia imagética; fotografia; a contaminação entre jogos digitais e televisão; e os construtos de games na pandemia.

Dentre diversas outras atividades acadêmicas realizadas a distância e que demonstram a importância de pensar nosso tempo, assim como também as relações interpessoais que cada vez mais, em especial neste momento, têm sido mediadas por meios digitais, por meio de nossas telas, algumas iniciativas discutem aspectos específicos do tecido social. Além de nossas discussões neste espaço, sobre as atualizações das audiovisualidades durante este tempo pandêmico, também podemos falar do grupo Digilabor, aqui da Unisinos, que discute as relações de trabalho mediado por sistemas digitais, assim como iniciativas de outras universidades, como o In-vitro: Dossiê Covid-19 do Lab 404 da UFBA, discutindo a materialidade das mídias.

Estas discussões inclusive já têm rendido produções bibliográficas por nomes importantes de nosso tempo, que pensam nossa sociedade. Slavoj Žižek reflete sobre como “a pandemia do coronavírus nos confronta com algo que considerávamos impossível: ninguém podia imaginar que algo assim realmente viria a ocorrer em nossa vida cotidiana – o mundo que até então conhecíamos parou de girar” (2020, p.68). Essa parada do mundo, que constata o fatalista filósofo sloveno, na verdade acabou por aprofundar uma série de injustiças sociais em função do movimento. O mundo não parou; logo no início da crise do coronavírus, o pesquisador Boaventura de Souza Santos já alertava que “a quarentena será particularmente difícil para as mulheres e, em alguns casos, pode mesmo ser perigosa” (2020 p.17), mas também para trabalhadores precários e informais, trabalhadores de rua, sem-teto, moradores de periferias e favelas, pessoas com deficiência, idosos, refugiados e imigrantes.

O mundo que até então conhecíamos parou de girar (Slavoj Žižek)

São preocupações que nos atravessam a todos e todas, em maior ou menor grau. Mas mesmo que esse momento tenha nos mostrado um (ou muitos) lado perverso da humanidade, não podemos deixar de olhar também para as possibilidades. Se em algumas dessas produções ensaísticas e/ou acadêmicas nos deparamos com um dos aspectos mais perversos para os que puderam fazer isolamento, a solidão, a filósofa e ativista Ângela Davis se solidariza e convoca “aqueles de nós que se sentem muito sozinhos durante o distanciamento social: devemos nos fortalecer, todos podemos nos sentir fortalecidos e energizados pela conexão com pessoas de outros cantos do planeta que neste exato momento passam por situação semelhante” (DAVIS; KLEIN, 2020, p.13).

Para além disso, sua parceira nessa discussão, a jornalista Naomi Klein, que há muitos anos é uma crítica ferrenha do que ela chama capitalismo do desastre, também convoca a uma mudança, propondo “construir uma economia que valoriza, enaltece e está enraizada na necessidade de cuidarmos uns dos outros. Vamos nos lembrar do consolo que a natureza nos proporciona com isso ocorrendo na primavera, vamos construir uma economia que se baseia em cuidar um do outro e de cuidar do planeta. É possível.” (DAVIS; KLEIN, 2020, p.32).

Devemos nos fortalecer, todos podemos nos sentir fortalecidos e energizados pela conexão com pessoas de outros cantos do planeta que neste exato momento passam por situação semelhante. (Ângela Davis)

Estes textos e sites acabam não só por ser um registro de discussões acadêmicas, mas um registro de nossos tempos e das questões que nos afetam em um momento tão peculiar da história recente. Nesse espaço, que mistura as afecções pessoais de pesquisadores e pesquisadoras, guardamos e protegemos questões que nos são preciosas, que são relíquias. São discussões que têm um valor imenso como registro e que são muito preciosas a quem as propõe. Assim, com esta escolha de palavras, chego ao ponto, ao artefato audiovisual que acabou por me afetar e propor essa reflexão.

Se o que montamos nestes espaços pode ser pensado como relicários de nossas afetações durante a pandemia, outros relicários também foram construídos, para além das reflexões, para guardar as histórias das pessoas que foram vítimas  da pandemia. No programa televisivo dominical Fantástico, as histórias de diversas vítimas foram narradas por artistas ‘globais’. Em maio, o jornal O Globo estampou na capa de uma de suas edições dominicais o número alarmante de 10 mil histórias interrompidas, infelizmente, menos de 10% do total de mortes no tempo em que este texto está sendo escrito.

Capa do Jornal O Globo de 10 de maio de 2020

Estas histórias, de vidas que se encerraram e que não mais podem pensar e refletir sobre os efeitos da pandemia em nosso tempo – e que hoje, só em nosso país somam mais de 140 mil histórias – não são números (é importante lembrar disso), mas vidas e histórias que foram tragicamente interrompidas exatamente por não nos permitirmos pensar no que nos faz humanos, no que nos é mais importante. Se Boaventura destaca que em primeiro lugar quem sofreria com a quarentena seriam as mulheres, a quem nossa sociedade impõe o fundamental papel dos cuidados com os outros, certamente também são as histórias destas mulheres que mais nos são caras por terem sido interrompidas, ou pelo menos deveriam ser. Além do nosso fazer da pesquisa, que nos faz pensar sobre essas histórias, que nos faz criar relicários sobre esse tempo, dar a ver estas histórias é fundamental para compreendermos nossa sociedade e para que jamais esqueçamos da importância da vida destas que nos deixaram.

Relicário:

Lugar destinado para guardar ou proteger coisas preciosas e/ ou relíquias.

O que pertenceu a um santo ou por este foi tocado, normalmente, refere-se às relíquias (bolsinhas ou medalhas) que algumas pessoas costumam carregar junto ao pescoço.

Aquilo que tem um valor imenso; que é muito precioso. Etimologia (origem da palavra relicário).

Do latim reliquarium.

A isso se propõe o projeto @reliquia.rum (em alusão à palavra relicário em latim) da antropóloga Débora Diniz, em conjunto com o artista Ramon Navarro. Com textos da pesquisadora e colagens feitas pelo artista, as histórias de vidas perdidas de mulheres são contadas, retiradas de sua invisibilidade e ajudando familiares e amigos a viver seu luto. A primeira publicação do perfil no Instagram conta uma história até então anônima:

Primeira postagem do perfil

A primeira mulher a morrer no Rio de Janeiro é sem nome. Sabemos que era empregada doméstica. Morreu porque não lhe avisaram que a patroa estava doente. “Deixou filhos. Deixou em nós a cicatriz do que faz a herança colonial neste país.”

A publicação é o mais puro reflexo de quem são as verdadeiras vítimas dessa tragédia, denunciada por quem reflete e discute sobre nosso tempo. Nos relicários criados por Débora e Ramon, muitas das experiências que discutimos em nossos textos estão presentes.  “O luto é uma experiência íntima, mas também pública. Por isso, o luto é sempre político.” Cada vez mais é importante discutir sobre o que nos afeta, para que ao nos questionarmos sobre o que está acontecendo, como na música de Nando Reis e a resposta não seja “O mundo está ao contrário e ninguém reparou”.


Referências:

DAVIS, Angela; KLEIN, Naomi. Construindo movimentos: uma conversa em tempos de pandemia. Boitempo Editorial, 2020.

DE SOUSA SANTOS, Boaventura. A cruel pedagogia do vírus. Boitempo Editorial, 2020.

RELICÁRIO. In: DICIO, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2020. Disponível em <https://www.dicio.com.br/relicario/> acesso em 28 set 2020

Žižek, Slavoj. Pandemia: covid-19 e a reinvenção do comunismo. Boitempo Editorial, 2020.


Texto: Leonardo de Mello

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