Em tempos de distanciamento, a aproximação interpessoal passou a ser mediada principalmente através da tecnologia. Se antes as telas já integravam boa parte do nosso cotidiano, a situação pandêmica incentivou uma comunicação ainda mais pautada pelas audiovisualidades. Nesta tarefa, redes sociais e aplicativos apresentaram saltos exponenciais na utilização por parte dos usuários, tendo como intuito promover videochamadas e reuniões online.
Junto a esses softwares, uma opção disponibilizada nas interfaces ganhou vários adeptos: os filtros. Estes promovem representações digitais e instantâneas da face. Ou seja, introduz-se um rosto para que seja transformado em uma imagem modificada a partir de camadas estéticas. Tal atividade costuma apresentar duas funções: promover um enquadramento aos padrões de beleza ou gerar uma brincadeira de caráter non-sense.
Redes sociais como o Snapchat e o Instagram se tornaram conhecidos por oferecer esse tipo de recurso. O interesse dos usuários levou aplicativos de reuniões, como Zoom, Teams e Google Meet, a também disponibilizar filtros e máscaras. Neste sentido, em abril deste ano, chegou a ser notícia uma chefe norte-americana que utilizou um filtro em uma videoconferência no Teams com sua equipe e não sabia desabilitar a ferramenta, interagindo durante toda reunião de trabalho a partir da imagem de uma batata. Também ocorreu o caso do padre de Minas Gerais que, ao realizar sua bênção online, apareceu durante toda transmissão com filtros que não teve intenção de adicionar.
Ao contrário dos casos citados, a professora Viviane Ferreira faz questão do uso de filtros para trabalhar com a alfabetização no ensino fundamental. Em depoimento no site Porvir – Inovações em Educação, ela contou que esta foi uma maneira de tornar a interação através da tecnologia mais atrativa para as crianças. “Faço brincadeiras que fazia em sala de aula, uso os filtros para o rosto das redes sociais e vou mexendo na ferramenta, já que também estou aprendendo junto com eles. Tudo para que se sintam o mais confortável possível do outro lado da tela e felizes de estar me vendo”.
Falhas no processo
A aplicação dos filtros suscita a ocorrência de falhas. O professor de Geografia e ex-BBB, João Luiz Pedrosa, foi um dos que problematizou a respeito das deformações que as edições deixam em pessoas com a pele negra. Em sua opinião, os filtros não foram pensados para esse público. “Eu peguei um aqui agora que afinou o meu nariz, me deixou com os lábios fininhos e eu fiquei laranja”, comentou nas redes sociais.
Outra questão levantada é de que muitos dos filtros não adaptam o rosto do usuário quando este usa máscara facial contra a Covid-19, um artigo de fundamental importância durante a pandemia. Esses deslizes nas traduções dos dispositivos demonstram que a tecnologia não foi totalmente treinada para corresponder à expectativa do usuário.
Reflexo na cultura
Os filtros também expandiram do cotidiano para diversas interpretações no contexto artístico. O filme de terror “Host”, lançado este ano na Netflix, foi gravado inteiramente por videochamada, mais precisamente pelo Zoom, durante a quarentena do novo coronavírus (Covid-19). A utilização de filtros e máscaras digitais integra a diegese da produção audiovisual, demonstrando a incorporação do recurso para criar ilusões e provocar sustos.
A interação entre humanos e máquinas tem sido cada vez mais frequente e, na série britânica “Years and years” (BBC/HBO), essa relação é levada ao limite a partir da personagem de Bethany (Lydia West), que utiliza filtros e máscaras digitais em realidade aumentada para se comunicar com as pessoas que estão ao seu redor. Ela se identifica como transumana e pretende fazer uma cirurgia para se tornar digital e eterna, como um arquivo na nuvem.
Faces imaginárias
Os exemplos citados aqui demonstram como a tecnocultura tem abordado a parte mais exposta do corpo humano. O rosto se tornou um convite à fabulação, à imaginação e a ficcionalização a partir de imagens produzidas no contexto das tecnologias digitais. Essas questões foram pesquisadas na tese “Antiface/Rosto imaginário: Fabulações nas imagens geradas por software”, de Clarissa Rita Daneluz, integrante do TCAv.
A pesquisa parte do interesse de Clarissa pelo rosto humano enquanto imagem, tela e território de conflito, especialmente no contexto de uma cultura midiática, audiovisual e tecnocultural. Até mesmo os erros se tornam objetos de estudo, uma vez que também se enquadram como movimentos fabulatórios, inclusive dotados de potência.
Para Mark Hansen, no livro “New Philosophy for New Media”, a tecnologia é uma extensão da capacidade humana que amplia o domínio sobre o mundo material. Neste sentido, os filtros e as máscaras podem ser considerados simulações interativas e, como tal, geram engajamento dos usuários, seja ao manipular a ferramenta, seja por oferecer uma virtualidade em retorno. Tal recurso ou funcionalidade, oferecida por várias das telas que nos deparamos cotidianamente, demonstram que as audiovisualidades foram exploradas e incentivadas durante a pandemia, contribuindo por uma softwarização da cultura cada vez mais enraizada.
Texto: Max Cirne
Referências:
HANSEN, Mark B. N. New philosophy for new media. Massachusetts Institute of Technology, 2004.
Matéria Porvir: Com a ajuda de filtros e vídeos, professora trabalha alfabetização online no ensino fundamental
Vídeo da professora Viviane Ferreira no YouTube
Matéria G1: Padre faz transmissão de bênção on-line e vira meme com filtros divertidos: ‘Acionei sem querer’
Matéria UOL: Chefe usa filtro de batata durante videoconferência e não sabe como tirar
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