Uma filosofia do software

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Entrevista com David Berry

Filosofia do software: código e mediação na era digital é o livro lançado recentemente pela editora Palgrave Macmillan, do Reino Unido. O autor, David Berry, professor e pesquisador de mídias digitais na Universidade de Swansea, em Gales, no Reino Unido, concedeu a entrevista a seguir, por email, na qual aborda alguns dos conceitos trabalhados no livro. Para o autor, o software é um emaranhado, um nó, que une o físico e o efêmero, o material e o etéreo. O software entrou no cotidiano de nossas vidas nos últimos dez anos, através do aumento do mundo eletrônico que substituiu o mundo mecânico do século XX. “De? máquinas de lavar? a? sistemas de aquecimento? central,? de brinquedos infantis? ? televisão? e o vídeo;? o velho mundo? eletro-magnético e? servo-mecânico? está sendo revolucionado com? a lógica? silenciosa de? dispositivos virtuais.? É hora, portanto,? de examinar? nossa situação? virtual”, comenta o pesquisador em sua obra.

Quais seriam as consequências de pensar a sociedade e a cultura sem levar em conta o software?

A principal consequência está relacionada aos desentendimentos sobre o modo com que a sociedade está cada vez mais sendo estruturada e organizada. Ao código/Software são delegados certos tipos de atuações, ou de performatividades, como calcular em certos sentidos, criar hierarquias, trazer certas coisas para o primeiro plano e enviar outras para o plano de fundo e assim por diante. De fato, em muitos casos, certos tipos de atividades são tiradas do domínio humano e exercidas acima de nós. Um exemplo trivial é o da luz automática que desliga se você não se move suficientemente. Você é colocado na perplexa situação de ter que movimentar os braços a cada dez minutos para manter a peça iluminada porque um computador decidiu que um humano que não se move não precisa de luz.

Nós poderíamos também ver um exemplo mais profundo nos mercados financeiros, em que as transações automatizadas e as transações de alta-frequência estão cada vez mais tirando os humanos dos mercados financeiros que tanto estruturam a vida de todos os dias. As decisões de milhões de investidores, que pode incluir fundos de pensão etc., são tomadas com o cuidado de pesquisas de milisegundo, e ? s vezes, de microsegundo, com vistas ao máximo lucro, mas que podem ter maiores consequências, como no tão comentado ‘crash relâmpago’ de 2010, em que um bilhão de dólares foi retirado das reservas da Dow Jones por vinte minutos, devido a uma inesperada interação de um complexo sistema algorítmico.

O conceito de? software vai além do sentido dado a ele na informática. Quais são as relações entre esse sentido e o pensar, por exemplo, a sociedade como um software?

Se você está perguntando se a sociedade age como um ‘programa’, então eu diria que não. Entretanto, é interessante que esta é uma metáfora que vem sendo cada vez mais utilizada para explicar as coisas, como o governo sendo um ‘código’, suscetível a ‘ reprogramação’ e ao ‘hackeamento’. Este é, com certeza, um jeito muito interessante de conceituar a política como um sistema técnico.

Quais são os fundamentos de uma filosofia do software?

A razão para a filosofia do software é que eu acredito que nós precisamos de uma certa mirada do alto, que alguns chamam de ‘top-sight‘. Como eu escrevi no livro: “filosofia, como um campo de pesquisa… deveria ter seus ‘olhos no todo’, e é este foco no ‘panorama como um todo’ que distingue o empreendimento filosófico e que pode ser extremamente útil na tentativa de compreensão desses… desenvolvimentos”. Em muitos sentidos eu vejo o meu livro como um prolegômeno a uma filosofia do software, que oferece uma cartografia do terreno que precisamos examinar. Para mim, os fundamentos vêm de um número de fontes filosóficas e teóricas, que incluem Heidegger, Serres, Latour, Tarde, Foucault, Deleuze e Ryle. Ela precisa igualmente conectar-se com a filosofia da tecnologia e com muitos importantes pensadores que têm contribuído com esta tradição.

E como entra o código nessa filosofia do software?

Código e software são dois lados da mesma moeda. Por esta razão, quando eu estou falando da totalidade do código e do software juntos, eu tento combiná-los no termo código/software. Entretanto, também é importante que entendamos as distinções entre eles, de modo que o código é textual na forma e o software é maquínico. Quando passa pelo processo computacional de ‘compilação’, o código se torna software, que é uma forma performativa da fonte textual.

Há diferenças teóricas entre a abordagem do software feita por Lev Manovich e a sua?

Os? insights? do? Manovich têm sido muito importantes para o meu trabalho, entretanto nós diferimos na abordagem do código. O Manovich é mais focado nas questões potencializadas pelo software na produção cultural, particularmente no seu trabalho mais recente, Software takes command. Aqui ele se volta particularmente para os softwares culturais, como o Photoshop, e como eles estruturam o trabalho cultural.? Por outro lado, eu estou particularmente interessado em como os dispositivos de cálculo estruturam a nossa existência, então a minha abordagem se volta bastante para a fenomenologia, particularmente para o trabalho de Martin Heidegger. De fato, a noção de plug-ins desenvolvida por Bruno Latour, e a ideia de que nós estamos nos livrando de forma crescente de nossa humanidade, por assim dizer, levanta importantes questões a respeito do que permanece e do que se distingue como humano e quais as consequências tanto para a humanidade como para as Ciências Humanas.

Como a filosofia do? software pode contribuir nos estudos do audiovisual contemporâneo?

Com a explosão da tecnologia digital no audiovisual, o código/software? agora é um fator estrutural para muitos sistemas audiovisuais, e consequentemente para o trabalho audiovisual, mas isso também está se tornando parte do repertório da ‘prática’. Como argumenta Manovich, existe realmente uma “softwarização” da cultura. Entretanto, eu também penso que existe um interessante movimento no uso da programação computacional em trabalhos culturais, por exemplo, utilizando meios como Max/MSP[1], Fluxus[2] e Improptu[3].? ? Particularmente o trabalho de? Masahiro Miwa,? Andrew Sorensen e os? Formant Brothers (o interessante? projeto colaborativo de Miwa).


[1] Max/MSP é uma? linguagem de programação visual? para? música? e desenvolvimento? multimídia? mantido pela? empresa San Francisco? com base em software da companhia? Cycling ’74. Durante sua história de 20 anos, tem sido amplamente utilizada por compositores, intérpretes, designers de software, pesquisadores e artistas para a criação de gravações inovadoras, performances e instalações (nota de redação).

[2] Fluxus é um motor para jogos 3D desenvolvido para livecoding. Usa o Scheme como linguagem de Comunicação, mas seu foco são os gráficos (nota de redação).

[3] Improptu é um programa de software interativo utilizado com sucesso nas faculdades e laboratórios de música, projetado para ajudar os alunos a tornarem-se músicos ativos e engajados – seja como ouvintes, intérpretes ou criadores.? Os alunos aprendem a valorizar, compreender, refletir e construir sobre suas próprias intuições musicais (nota de redação).

Tradução: Bruno Leites e Juliana Recart

Revisão: Cybeli Moraes